MAURÍCIO ADINOLFI

Águas internacionais

Guma está apaixonado por Dona Juma, mulher mais velha e benzedeira, tem duas vezes a sua idade - pra ser mais exato. Dona Juma também ama Guma, o espera sempre de manhãzinha do retorno das madrugadas em alto-mar. Já são dez anos de morte, mas a volta é sempre certa, vem trazendo peixes e poemas: O amor é ciência / O mar não tem lado / Volto por um milagre / A amar a minha amada. Não é muito bom de verso, mas o suficiente pra Juma mudar de nome toda vez que o avista no longe descampado, já foi Cida, Carmem, Vera, Rosa, Cleide e Margarida. Odeia poemas, mas finge ama-los, já que a alma penada ainda dá um caldo. Mesmo morto Guma é lindo, pelo no torso e muque de montanha. Campeão de queda de braço da vila, o braço esquerdo é maior que o direito.

Tudo é duplo em nossas vidas / Vida e morte / Carneiro e bode / Ao sussurro de pigarro / Molha sempre Margarida. Não se tocam mais, nem daria, moram com seus pais, filhos, gatos e galinhas. A casa é simples, nem herdada e nem comprada, ocupada por todos da família em certo dia de vigília. Ninguém vê o coitado, apenas a sua amada pelo cheiro o reconhece, um pouco de sargaço com alfazema. Guma morreu a 160 milhas da costa brasileira, dizem que cometeu suicídio, mas ninguém sabe que foi morto pela própria rapariga. Faca apunhalada no coração e empurrão no infinito mar. O corpo de Guma voltou a praia depois de 7 dias, reconheceram pela roupa e pelo molar de leite que ainda tinha. Morri tragado pelo sal / Todos pensam que parti / Deixarei minhas palavras / Barco quebrado e vela rasgada / Dedo em riste e desgraçado / Apaixonado pela minha amada / Apunhalado e malparido / Do outro lado da vidraça / Reconheço o bem vivido.

 

 

Centro Cultural São Paulo - Brasil / 2016 (primeiro texto)

 

Grandes e pequenas embarcações, longas faixas de areia, extensos deslocamentos que levam o corpo a exaustão, alguns elementos da vida marinha remetem a uma profunda melancolia. Paisagens pintadas por Pancetti: belas e tristes. Caymmi sabe: "O mar / pescador quando sai / Nunca sabe se volta, nem sabe se fica / Quanta gente perdeu seus maridos seus filhos / Nas ondas do mar”. Muitos outros também cantaram sobre pescadores. Titanic é muito popular pra se tornar uma narrativa de infortúnio? Corta o coração saber que alguém só conheceu as ondas depois de adulto. Bas Jan Ader na performance 'In Search of the Miraculous' (1975) desapareceu no Atlântico ao tentar atravessar da costa leste dos Estados Unidos em direção a Europa em um pequeno veleiro - o contato foi perdido, tragado pelo milagre, nem o corpo encontraram (tampouco o de Ulysses Guimarães). Ernest Hemingway em alguma edição do livro O Velho e o Mar, escreve: "A vela fora remendada em vários pontos com velhos sacos de farinha e, assim enrolada parecia a bandeira de uma derrota permanente”. O mar enfrentado pelos refugiados - enganados por coiotes, impedidos pelas fronteiras de seguirem viagem, afogados. Ressaca; tsunami; horizonte a perder de vista, retinho em linha, não deve acabar. Degelo da Antártida. Em recente notícia divulgada na imprensa brasileira sobre a poluição do Polo Industrial de Cubatão, foi observado inúmeros casos de mutação nos caranguejos-uça, a elevada concentração de metais pesados fez com que algumas mudanças aparecessem no crustáceo: “O animal lutou com outro animal e perdeu uma parte do corpo. Em vez de regenerar um dedo só, ele regenerou cinco dedos. Parece uma mãozinha.” [1] Já para os humanos que se alimentam de tais animais há uma maior possibilidade de desenvolver câncer, má formações e doenças neurológicas. O desconhecido. O naufrágio.

 

O 'Adamastor' de Maurício Adinolfi tem um pouco da melancolia e da força do mar, o título do projeto faz referência ao gigante-mítico de Camões em “Os Lusíadas”. Gigante esse amedrontador de Portugueses: "Naufrágios, perdições de toda sorte; / Que o menor mal de todos seja a morte!”. Adamastor poderia ser uma grande onda, um vento do Norte, um mar todo de espuma de visibilidade nula, um Triângulo das Bermudas, poderia destroçar qualquer embarcação ou engolir cada ser humano da Terra, mas Adamastor teve um triste destino, quem ficaria com um gigante? A tristeza do amor não correspondido o draga como um leve sedimento das profundezas: "Converte-se-me a carne em terra dura; / Em penedos os ossos se fizeram; / Estes membros que vês, e esta figura, / Por estas longas águas se estenderam.”

 

O barco caiçara usado em 'Adamastor' está dividido ao meio, metade de um lado e metade do outro, separados proa e popa pelo vão/passarela da instituição. O nível da rua pode ser pensado como o nível do mar, o espectador é capaz de orientar-se entre os pisos - ora abaixo das águas e ora andando sobre elas. Os cabos que ligam as partes divididas prolongam a área inexistente, o que dá a embarcação um membro fantasma tantas vezes superior ao seu corpo original. As placas de madeira, que um dia foram robustas, ali aparecem muito frágeis; gastas, não poderiam mais navegar, sua função primordial. O interior do barco, os encaixes e o padrão da construção de madeira se aproximam da arquitetura do CCSP, bem como também do interior de uma baleia.

Os ossos da baleia Jubarte que configuram parte do projeto foram coletados pelo artista na Praia Branca em Guarujá (SP), ao chamado de Ângelo, integrante do Instituto Gremar, que já sabia do interesse de Adinolfi pelos restos do animal atracado. Ao chegaram no local, a carne ainda existia. Adinolfi limpou os ossos e os transportou com dificuldade por entre caminhos de pedra. Encontro esse não fortuito, já que a investigação do artista junto aos ribeirinhos perpassa longos 9 anos. Há um interesse em entender a comunidade e as relações entre trabalho e impacto ambiental, entre estética e uso social da arte. Na exposição, os ossos quase se transmutam em belas peças de mármore, ainda mais exibidos próximos a escultura 'Eva' de Victor Brecheret, estão na mesma altura.

 

Adamastor é mais um dos desdobramentos da investigação que Mauricio Adinolfi vem levando a cabo nos últimos anos, em que busca entender o comportamento de elementos do cotidiano da vida marinha dentro de contextos institucionais. Interessante notar que, neste caso, no Centro Cultural São Paulo, o trabalho parece integrado à arquitetura do prédio, pois divide com ele semelhanças de forma e estrutura. O barco que aparece em 'Adamastor' é o mesmo de 'Marina' e 'Calafate', outros dois trabalhos anteriores do artista. A cada aparição, ele se transforma, parece envelhecer: em um primeiro momento se exibiu inteiriço, em um segundo momento, dividido em dois e nesse terceiro momento já destroçado quase que por completo. Permanece, no entanto, seu ar imponente e sua vontade de navegar por estruturas nunca antes pensadas para um simples barco.

 

 

Centro Cultural São Paulo - Brasil / 2016 (segundo texto)

Adamastor, 2016

Duas partes de um barco caiçara de madeira, cabos de aço, metal, sal marinho, ossos de baleia Jubarte, mercúrio e técnicas de calafetagem