DIANA DIAS

estalo #1

Carmen gravava pelo menos uma fita k7 por noite, sempre achava que ia precisar das músicas um dia, talvez para criar uma trilha sonora eterna para sua vida. José já colecionava um número considerável de quinhentas e quarenta fitas K7, o que dava mais ou menos cinco mil músicas, muitas delas repetidas. Havia começado há pouco mais de dois anos na empreitada. As fitas transparentes, leitosas e coloridas se empilhavam em estantes de diversas casas, a marca alemã Basf estava entre as favoritas, era capaz de deixar o som mais real. Helena escrevia em todas as capas com caneta azul, criava um padrão para não se perder, o nome da banda na lombada e na frente as músicas gravadas, quando não sabia o nome da banda ou cantor, inventava associações: música para dançar, música alegre para crianças… era uma precursora das escolhas do Spotify, poderia inclusive trabalhar para empresa na criação de playlists. Quase todas as músicas das primeiras fitas gravadas por Marcos vinham com a voz cortada do radialista de brinde, acabava a música e o maldito quase gritava para dar alguma informação: “e essa foi a melhor da noite para casais apaixonados” ou “um oferecimento do restaurante chinês Ying Lan”, sem dúvida nunca completava a frase, o stop vinha antes, “muito bu… “ ou “pass…”, mas com o passar dos tempos foi aprendendo a metodologia usada pelos apresentadores, sabia o momento certo de parar, poderia até perder o finalzinho da música, mas não tinha que gravar por cima da voz do radialista uma outra canção ou voltar para gravar um período de vazio para garantir o intervalo entre as canções.

Fátima passou a gravar fitas e mais fitas com o passar dos anos, dava de presente a amigos, namorados e pessoas desconhecidas, havia se tornado aficionada em gravar as coisas do rádio, passando em certo momento da vida a gravar apenas as coisas entre as canções, o que antes era um problema, anos depois passou a ser o seu grande fascínio. A formação em pedagogia de Augusto nada tinha que ver com seu encanto por jingles, notícias e frases sem importância proferidas por radialistas. Certo de que estava fazendo um bem as comunicações, seguiu por anos a fio a investigar para o seu próprio museu de gravações de rádio. Podemos torcer o nariz ou virar os olhos ou franzir as sobrancelhas ou achar uma grande besteira, porém sua coleção chegou aos ouvidos de Jive Bunny and the Mastermixers. O grupo, histórico por criar remixes nas décadas de 1980 e 1990, o convidou para o primeiro show em solo brasileiro, com acesso livre ao camarim, conviveu com os três jovens e um homem fantasiado de coelho, personagem-marca do grupo.

 

 

 

O estalo #1 é composto por objetos encontrados. Um quase ready-made que de pronto pouco teve. Uma tábua de compensado de 31 x 70cm que estava a meses pegando poeira na Pavuna. Sobra da obra de Dona Carmem que contratou o serviço da empresa de móveis sob medida para modernizar sua cozinha. Com dois ou três telefonemas, a sócia da empresa concordou em ceder a peça empoeirada - “Claro, claro, já não tem utilidade para nós. Na próxima obra na Tijuca combinamos a entrega”. Quase uma semana depois, o compensado entrou no caminhãozinho com Andreia e percorreu 25,7 km, passando pela Avenida Brasil toda engarrafada. Sobre a tábua, roda um pedaço de fita cassete ad infinitum, fita essa da marca alemã Basf que foi encontrada numa caixa de papelão junto de muitas outras, mas, ao contrário da maioria, ela não tinha como conteúdo as aulas da faculdade de direito que João começou e nunca terminou. Na caixa da fita escolhida, Rosi escreveu uma lista de músicas do Jive Bunny and the Mastermixers, trilha sonora recorrente nas festas de aniversário de sua filha no início dos anos 1990. Essa fita foi aberta, e, agora, só é possível ouvir seu conteúdo em intervalos de mais ou menos 35 segundos, quando cada fragmento cortado e remendado com durex gira sobre o compensado de 31 x 70cm. O motor e o cabeçote magnético acoplados a tábua foram retirados de um antigo toca-fitas. Antes dos 15 anos que passou esquecido numa caixa, ele costumava ficar na cozinha da sétima casa de uma vila, onde Maria da Luz ouvia o rádio enquanto preparava suas sopas. O sinal magnético é amplificado por uma pequena caixa de metal que Fernando construiu ainda nos anos 1980. Ela está na lista dos inventos do professor engenheiro, ao lado do seu sensor de terremotos caseiro.

Preso na lateral do compensado está um cilindro metálico conectado a um segundo cabeçote magnético, que pertenceu ao toca-fitas Sony que João levava para gravar suas aulas da faculdade de administração que ele fez do início ao fim. No interior do cilindro, seu circuito traduz em sinal magnético tudo que recebe. Conectado ao cilindro está a última peça do estalo #1, seu microfone. Por dentro, ele é, essencialmente, um antigo microfone externo de computador, daqueles quase brancos com a base redonda. Por fora, o microfone é a junção de um funil de plástico que já foi verde e um tubo preto. O tubo, era parte de um aspirador de pó e foi encontrado, já em pedaços, na caixa de resíduos da oficina de madeira e metal da faculdade, que de fora mais parece um estacionamento bem localizado ali ao lado dos arcos da Lapa.

Desde setembro de 2014, o estalo #1 foi a rua algumas vezes. Fez feira na Lagoa numa manhã de sábado. Esteve no Largo de São Francisco e atrapalhou a missa de 12h na quinta-feira. Foi ignorado em Botafogo na praça da saída do metrô. Foi esquecido no teto de um carro em movimento. Caiu e foi atropelado por um caminhão. Por sorte, só sofreu ferimentos leves, a saída RCA amassada foi desentortada com um alicate. Agora, estalo #1 está aqui, instalado no espaço do .aurora de 1,5 x 1,5 x 1,5m, esperando o tempo e as vozes.

 

 

texto por Diana Dias e Renan Araujo

 

Exposição "estalo #1" - Diana Dias – Projeto Vitrine 2015 - .Aurora, São Paulo, agosto, 2015