adriano costa

farrapos

“A escultura deve nascer do chão, como uma planta.” Franz Weissmann

 

 

Planos tortos, cores desbotadas, materiais descartados e objetos provenientes de contextos geográficos distintos são organizados de maneira a provocar um embate entre elementos formais carregados de significados e situações marginais. Adriano Costa (1975-) é um artista brasileiro baseado na cidade de São Paulo, com um recente corpo de trabalho que não deve chegar a atingir os dez anos de produção. Seus interesses perpassam a pintura, a escultura e outras técnicas que se fundem em colagens e apropriações.

O artista costuma dizer que seus trabalhos são uma pré-escultura, eles existem em um momento anterior ao instante de tornar-se alguma coisa. Um dado importante para entender o raciocínio e organização dos projetos é esse momento de transição do trabalho - há o instante onde os objetos passam de utilitários a estetizados, podendo esse instante ter a possibilidade de retorno e tornar-se novamente um objeto com funções específicas dentro de uma casa ou contexto outro. Ora é um objeto do mundo e ora torna-se parte de uma obra.

Depois que a obra é exibida, é possível que partes desse mesmo trabalho se desloquem para integrar um outro projeto em uma segunda montagem. Partes pululam de um lado a outro, há uma fluidez que não deixa estático o objeto em sua condição de trabalho finalizado, havendo a possibilidade de tornar-se outra coisa no instante da convocação do artista. Na série Tapetes (Figura 1), os objetos são rearranjados por junções ou apenas exibidos sem interferências externas, subindo pelas paredes e pregados com fita crepe, quase recebem a alcunha de tridimensionais, por pouco não criam um corpo a ocupar o espaço cúbico. Espacialmente distribuídos, seguem uma harmonia orquestrada pelo artista, o que era para ser uma estrutura dissonante logo se põe em elegância, a seu modo, com suas estruturas forma-cor espalhadas pelo ambiente. Fica evidente o caráter doméstico dos materiais elegidos: ganhados, roubados, achados, comprados. Um caminho de mesa de crochê, uma toalha de rosto do Corinthians e outras criando a forma de uma cobra, flanelas sobrepostas, cobertores dobrados, carpetes em tom terroso, tapetes de lojas de R$ 1,99, panos de chão e pedaços de outros tecidos e camisetas são alguns dos exemplos dos materiais. Alguns dos tapetes apropriados são confeccionados com restos de tecidos cruzados que posteriormente recebem uma serigrafia com a figura de animais, tais tapetes são facilmente encontrados em lojas populares a preços acessíveis, sendo muito comprados justamente pelo seu baixo valor e alta função. Algumas formas que aparecem nas composições habitam um leque de símbolos históricos reconhecíveis: cruz e suástica, já outros pedem ao espectador um repertório específico de interesse para serem identificados, por exemplo, o símbolo usado por uma banda de punk. Todos estes símbolos são impregnados de um caráter místico e ideológico. Os tecidos/panos carregam um caráter emocional em suas escolhas – ao se apropriar de uma toalha de rosto usada por algum amigo, é também capturada a memória existente no objeto e transposto ao trabalho, há uma carga de sentimento em cada pedaço que constitui Tapetes. Aqui é possível identificar a noção de coleção, que está diretamente ligada a um caráter emocional: a métrica ao se apresentar os trabalhos, o aparecimento de um mesmo objeto repetidamente, a disposição espacial e as relações afetivas presente nas escolhas, tudo está ligado ao ato de colecionar. Costa coleciona coisas que normalmente poucos possuem o interesse de guarda. Valora objetos destituídos de valor.

Há uma escolha kitsch em determinados materiais que se contrapõem a outros de caráter nobre e tradicionais na História da Arte, como o bronze, que na produção de Adriano pode aparecer em diversas formas: cana-de-açúcar, embalagens ou bacias; como no trabalho Community, toda a elegância do material é perdida ao adicionar urina seca a uma bacia de bronze, com isso há um retorno forçado do objeto ao mundo. Sua posição torna-se inferior, tirando a hierarquia do material e o colocando mais próximo dos outros usados por Adriano. Uma mesma tentativa de dar uma aura de importância a objetos sem “classe” é observada quando o artista pinta de dourado os objetos, como em Straight from the house of trophy - Ouro Velho, uma variada quantidade de tapetes e plásticos são alçados enganosamente a uma classe superior apenas com a nova cor-brilho que recebem. Dourados, agora se impõem no espaço.

Seguindo os materiais dotados de tradição histórica, há na produção do artista o aparecimento de colagens e objetos que trazem o gênero natureza-morta, gênero este que sempre foi colocado como o mais baixo dentro da pintura acadêmica. Adriano se vale deste escopo. Nesses trabalhos, além dos materiais já presentes nas composições anteriores, temos o surgimento de elementos orgânicos: frutas e legumes que reagem de forma diferente aos demais materiais presentes em outros rearranjos, seu tempo de vida é breve. Aqui é possível se aproximar das vanitas, não apenas de uma forma representativa, mas com os próprios elementos efêmeros característicos do estilo. As frutas e legumes não estão apenas como objetos representativos, mas como parte da ocupação espacial. O gênero natureza-morta ganha uma mudança em sua abordagem e uma valoração na pintura moderna com os trabalhos de Cézanne e Morandi. Esse último, é possível de encontrarmos como referencial nas peças de Adriano, tanto em Greve, onde a disposição dos objetos (embalagens feitas de bronze, pátina e urina) alude as pinturas de Giorgio Morandi, quanto em To Morandi with Love, que inclusive recebe o nome do pintor. Há uma certa proximidade entre os dois artistas, principalmente na escolha por objetos domésticos e sem grandes importâncias. Mário Pedrosa escreve nos anos 40 sobre Morandi: “Ele aparece antes como o junco pensante de Pascal a curvar-se ante o mistério das coisas humildes e sem grandeza”.¹ Os elementos prosaicos detêm influência sobre o interesse de Adriano.

A base de uma escultura tradicionalmente é usada para elevar o objeto a seu posto, para Adriano a base é usada de uma outra forma, não há a separação entre obra e base - ora a base é a própria escultura ora é integrada ao objeto. Podemos pensar em um mesmo procedimento, sem dúvida dentro de um outro contexto e época, realizado por Lygia Clark ao retirar a moldura das obras tornando-as parte integrante do mundo, como colocado por Ferreira Gullar:

 

Os quadros de Lygia Clark não têm moldura de qualquer espécie, não estão separados do espaço, não são objetos fechados dentro do espaço: estão abertos para o espaço que neles penetra e neles se dá incessante e recente: tempo.²

 

Ou pintando as molduras para torná-las parte do trabalho, como escrito pelo mesmo autor:

 

A moldura é precisamente um meio-termo, uma zona neutra que nasce com a obra, onde todo conflito entre o espaço virtual e o espaço real, entre o trabalho ‘gratuito’ e o mundo prático-burguês se apaga. O quadro - essa superfície plana coberta de cores organizadas de certo modo e  protegida por uma moldura - é pois, em sua aparente simplicidade, uma soma de compromissos a que o artista não pode fugir e que lhe condiciona a atividade criadora. Quando Lygia Clark tenta, em 1954, ‘incluir’ a moldura no quadro, ela começa a inverter toda essa ordem de valores e compromissos, e reclama para o artista, implicitamente uma nova situação no mundo.³

 

O mesmo procedimento acontece com a ação de Adriano de integrar a base à obra ou descartar seu uso como mediadora entre obra e espaço mundano. Temos como exemplo os trabalhos: Flamingo, morena#bronze#G I A N T, o trabalho mole, Tête de Femme, Red Marble – Monumento e Cidades-Cinza/Belos Museus, são como monumentos ou projetos de monumentos a personagens dados como obsoletos: meia, pé-de-cabra, machadinha, queijos em bronze, tênis etc, mas que aqui representam importantes símbolos e heróis escultóricos. Totêmicos. Um dos trabalhos é construído por um pedaço de arame farpado pintado de vermelho, tal objeto é estruturado para que sua base fique em cima de um pano e seu corpo em diagonal com a parede, uma imagem banal, um monumento ao próprio objeto em questão.

É possível verificar que os trabalhos carregam um humor, principalmente nos títulos dados as obras e também na forma com que seus materiais se posicionam frente ao espectador – um emaranhado de cuecas causa um certo riso e estranhamento - e de primeira instância representa uma estratégia para se posicionar frente ao sistema asséptico dos espaços da arte contemporânea: museus ou galerias. Seus materiais, mais uma vez, advém de fora, das ruas. Sabemos que lá fora é que mora a realidade e a arte apenas representa algo ou no máximo mimetiza o real. Adriano trás para o espaço da arte os elementos externos e aborda com isso situações históricas, em uma maior escala quando é visível a citação a elementos da História da Arte - para se aproximar ou negar - e em uma menor escala com a captura da memória existente nos objetos apropriados. Também questiona acerca do valor das coisas que existem em campos distintos de atuação: o espaço da arte e o espaço doméstico.

As composições reorganizadas do artista recebem uma certa importância depois de exibidas. Adriano ao mesmo tempo que prescinde do espaço de exibição, quase ironizando a sacralização da arte - usando materiais descartados ou sem acabamento - volta-se ao espaço expositivo para legitimar os trabalhos, agora são objetos dotados de plasticidade e possuem seu lugar como arte. É nesse momento de transição que o trabalho passa a ter uma potência e, mesmo confortáveis e domesticados dentro do cubo branco, não são puros e inocentes.

 

-------------

 

Notas

1 ARANTES, Otília B. Fiori (org.). Modernidade: cá e lá: textos escolhidos IV/ Mário Pedrosa. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.

2 GULLAR, Ferreira. Uma experiência radical. In: LYGIA Clark. Rio de Janeiro: Funarte, 1980.

3 idem, ibidem.

 

-------------

 

Texto realizado para a revista Arte & Ensaios / UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro.

fotos cortesia Mendes Wood DM